Keisuke Kinoshita e seu cinema de sensibilidade II

By rodrigo araujo - agosto 29, 2014



Falar do cinema de Keisuke Kinoshita é também falar de um solo fértil para o encontro poesia/cinema. Ou, para ilustrar minha ideia de encontros (diálogos): aquilo que um estimado professor de Filosofia, Gilvan Fogel, em seu livro Sentir, Ver, Dizer (2012, Editora Mauad X), diz do modo próprio de ser da arte, que pontua a cadência da vida, quer dizer, que o encontro arte e vida é: “a vida, de acordo com e a partir de a arte; uma vida, pois, que se faz, que cresce desde a arte” (Gilvan Fogel, 2012, p.11, Introdução). Vida e arte, isto é: articulações. Mestre em articular vida e arte, Kinoshita também ousou na linguagem audiovisual, no experimentalismo. Arrisco dizer que todo estudante de cinema ou todo aspirante devia passar pelo cinema de Kinoshita, pelo menos com os filmes "A Balada de Narayama" (1958) e “O Rio Fuefuke” [Fuefukigawa] (1960), para meditar com mais afinco sobre a semiótica e o experimentalismo cinematográfico. Nesta parte final das notas sobre o cinema de sensibilidade de Keisuke Kinoshita, defendo, com rigor e paixão, uma tríade fundamental de seu cinema: que se constitui dos filmes “A Balada de Narayama”, “Vinte e Quatro Olhos” e “Amor Imortal”. Falarei um pouco sobre eles.


Ser e mundo segundo “Vinte e Quatro Olhos”

 Um filme para todos, mas também um filme que todo professor e aspirante devia assistir. Um filme completo em suas quase 3h de duração, pegando um Japão antes e pós-guerra. Um filme sobre uma professora atemporal, Hisako Oishi -- que já nos primeiros minutos do filme a vemos causar um "estranhamento" pelo modo de se vestir (de terno) e por andar de bicicleta (no vilarejo, apenas os homens possuíam bicicleta). No filme, Hisako é perseguida por comunismo e anti-patriotismo, por fazer seus alunos questionarem a realidade. Hisako corporaliza a figura do professor que está quase totalmente perdida neste século: a do professor que faz seus alunos des-cobrirem o mundo, fazer do aluno um descobridor. Porque todo homem é, em essência, um descobridor. E trago aqui uma preleção de 1928-29 do filósofo alemão Martin Heidegger, “Introdução à Filosofia” (2009, Editora Martins Fontes), em que o homem (ser homem, primeiramente, já é filosofar, porque já estamos na filosofia, cf. p.4) é essencialmente des-cobridor-no-mundo (está sempre em um buscar e questionar, cf. os primeiros parágrafos do clássico Ser e Tempo). Toda descoberta é um desvelamento, e na ontologia heideggeriana, a própria noção de verdade é desvelamento, manifestação do ente. Cito Heidegger: “[...] o desvelamento (verdade) [...] depende de modo decisivo do ser-descobridor, do ser-aí, ou seja, de sua existência” (Heidegger, 2009, §16, p.133). O que queremos na ontologia heideggeriana especialmente nesta preleção “Introdução à Filosofia”? Todo ser-aí humano está des-cobrindo coisas, des-cobrindo o ente por si subsistente. Descobrindo e compartilhando. Mesmo que ele não compartilhe suas descobertas (i.e. feche o acesso da descoberta), mesmo que ele guarde para si suas descobertas, ele já está compartilhando, porque a verdade (desvelamento) já é algo compartilhado: “Essa verdade é algo que ele necessariamente compartilha com os outros” (Heidegger, 2009, Idem, p. 135). Porque o ser-aí já é “anteriormente e essencialmente aberto” (Heidegger, 2009, §17, p. 142) – algo de nuclear na ontologia de Heidegger, mesmo que faticamente sozinhos, nós já estamos junto a... porque o ser-aí é essencialmente ser junto a... ser-com-os-outros (Heidegger, no mesmo §17, usa a imagem de um círculo, onde o ser-aí se movimenta e participa do círculo do outro). Se nos apropriarmos das des-cobertas e des-velamentos da ontologia heideggeriana, podemos nos movimentar nos campos das descobertas do cinema de Kinoshita. Pelas vias da educação (pelo espaço “sala de aula”), Kinoshita nos direciona para o essencial do homem, para o essencial do ser junto a...heideggeriano. Tudo neste filme do Kinoshita é, pensando heideggerianamente, partilha e descoberta.

Outra coisa interessante neste filme é que Hisako é acusada de comunismo por ensinar coisas "impróprias" (segundo o diretor da escola) aos alunos. Não vejo muito Hisako como comunista. Lembra muito "um certo" Platão, de sua clássica e mal lida "A República", que direciona a todos de sua pólis ao civismo, pois só o civismo interessa (por isso, alguns poetas seriam "expulsos", e apenas os poetas cívicos permanecendo). Hisako se aproxima mais de um tipo de poeta mimético que não interessa ao civismo. Digo "Um tipo de poeta", porque, pensando com Platão, a poesia é sempre belicosa. E Hisako parece ser essa representação da poesia belicosa. Porque leva o ser ao desvelamento e ao questionamento do mundo. Ao fazer seus alunos questionarem as coisas, a descobrirem novas coisas, (no máximo, a pensar), Hisako está apontando para o: “abra os olhos”. E nesta época de pouco ou nenhum questionamento, nesta época em que a escola parece ser tudo menos escola, este filme se faz urgente, ainda. Mantém-se atual e necessário.

Em “Vinte e Quatro Olhos”, a urgência do questionar tem como pano de fundo a guerra. Nos filmes de Kinoshita, a guerra está sempre ali, direta ou indiretamente. Se aqui ela é pano de fundo, a recepção e efeito da guerra terá presença forte no filme “O Rio Fuefuke” (1960). Um rio, ou a travessia do rio que é a travessia da vida (ou, como diz um off do filme: a travessia do véu da vida). Os encontros e os desencontros (um outro off, extremamente brilhante neste filme é: O encontro já é separação).

(Notas de rodapé acerca do título “Vinte e Quatro Olhos”: No início do filme, ao chegar ao vilarejo, Hisako leciona para 12 alunos, e em um período de mais ou menos 20 anos, após um período de desistir da profissão, já mais velha e de volta à profissão, Hisako lecionará para outros 12 alunos, muitos deles filhos de seus antigos 12 alunos. Os momentos finais deste filme são de uma preciosidade e sensibilidade impares).


Terceira ponta da tríade fundamental de Kinoshita: “Amor Imortal” e a poética da renúncia


Neste filme, Kinoshita consegue a supremacia da beleza, da poesia e da sensibilidade, aliada a uma extrema simplicidade do narrar – a mesma simplicidade do narrar que temos em “A volta de Carmen” (1951). E quando falo em simplicidade do narrar, também quero deixar implícito: o modo como nós (que assistimos) nos apaixonamos e nos entregamos à exegese. Neste “Amor Imortal” (1961), acompanhamos e participamos do drama de Sadako, uma jovem que nutre um grande amor pelo combatente Takashi, mas acaba sendo violentada pelo também combatente e influente Heibei (que nutre um grande ódio por Takashi, vê-se, logo, porque ele violenta a jovem Sadako). Com sua influência, Heibei, por qual é impossível assistir ao filme sem nutrir um asco a suas ações de "baixa índole" (para lembrar Aristóteles), força um casamento com Sadako, que, por força da tradição, aceita silenciosamente. É muito dolorosa (a dor tem presença central neste filme) uma fala da Sadako para Tomoko, mulher com quem Takashi posteriormente se casa: "O que não consigo esquecer não é o seu marido, mas sim o que eu tive de passar". Com o passar dos anos, no tempo da exegese, as folhas da árvore vão, aos poucos, caindo. Sadako terá filhos; o filho fruto do estupro, ao atingir a adolescência e saber que foi fruto de um abuso, se suicidará; Takashi também terá seus filhos; e, depois das tempestades, Sadako e Takashi ficarão e não ficarão juntos (vale pontuar que este filme não cai em clichês de histórias de enamorados separados por peripécias da narrativa; não contarei o final para que o leitor possa assistir e tirar suas conclusões). 

No livro "História do cinema japonês”, a pesquisadora Maria Novielli diz que após “O Rio Fuefuki” [Fuefukigawa] Kinoshita fez filmes "qualitativamente menos importantes" (Novielli, 2007, p.201). Não sei se a Novielli teve contato com este filme, mas discordo totalmente desta citação e não consigo ver este filme como "menos importante", mas como obra de arte. Um filme que toca na simplicidade da vida e por isso mesmo toca em “estado de arte”. Não é a própria arte oriental que toca na simplicidade da vida com maestria? Tocar na simplicidade da vida não é apenas tirar a poesia da torre de marfim, mas também fazer-ver o “dentro” das coisas pelo caminho da poesia. Retorno à afirmação: no cinema de Kinoshita, penso que "A Balada de Narayama", "Vinte e Quatro Olhos" e este "Amor Imortal" se constituem a tríade fundamental de seu cinema. Penso também no ajuste de contas: aqui, não temos o experimentalismo visual de "Fuefukigawa", o intimismo e a bela fotografia de "A Balada de Narayama". Temos um drama familiar rodeado de tragédias. Temos um filme sobre Renúncia. A vida de Sadako é uma vida de inteira renúncia e sacrifícios. A todo o momento Sadako ocupa o lugar da vítima, do corpo violado. E por isso mesmo tem de fazer suas renúncias, seus sacrifícios, sua escolha por uma vida de silenciamentos. E justamente por funcionar como uma poética da renúncia que eu vejo esse filme como fundamental no cinema deste diretor. Sem dúvidas, concluo estas notas deste grandioso cineasta nipônico que precisa, com urgência, ser visto, revisto e (re)pensando, com a afirmativa, simples e apaixonada: filmes para ficar na memória.
 

"Vinte e Quatro Olhos"

"Vinte e Quatro Olhos"

"Vinte e Quatro Olhos"





































"Amor Imortal"

"Amor Imortal"

"Amor Imortal"




























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Rodrigo Araujo.

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